segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Do mito à tragédia

"A tragédia nasceu do culto a Dioniso", assinala Brandão (1984, p. 9). Segundo a antiga mitologia grega, houve dois Dioniso; o primeiro, filho de Zeus e Perséfone, chamava-se Zagreu, era favorito de seu pai e dos homens e estava destinado a sucedê-lo no governo do mundo. No entanto, para protegê-lo do ciúme de Hera, Zeus o deixou sob os cuidados de Apolo e dos Curetes, que criaram Dioniso nas florestas do monte Parnaso. Mesmo assim, Hera enviou os Titãs para que o capturassem. Apesar de várias metamorfoses tentadas por Dioniso, os Titãs o surpreenderam sob a forma de touro e o devoraram. Palas Atena conseguiu salvar-lhe o coração, que ainda palpitava. Há variantes desse mito que assinalam que a princesa tebana Sêmele engoliu esse coração, tornando-se grávida, ou, que o próprio Zeus o engolira antes de fecundar a princesa. De qualquer forma, o resultado é o mesmo: da união nasceu Iaco, nome místico de Dioniso, Zagreu ou Baco. (BRANDÃO, 1984, p. 9)

Baco
Michelangelo

Em seu livro sobre mitologia, Bulfinch (2002, p. 196) continua a estória dizendo-nos que, Hera, querendo vingar-se "assumiu a forma da velha ama daquela, Béroe, e insinuou-lhe dúvidas no espírito, quanto ao fato de ser o próprio Zeus o seu amante"; persuadida, Sêmele pede a Zeus que apareça em toda a sua imortalidade, este, que havia jurado pelo rio Estige jamais contrariar-lhe um desejo, aparece com suas vestes e seus raios; infeliz destino, a presença de Zeus em sua plenitude acaba por incendiar o palácio, carbonizando a princesa. Segundo Brandão (1984, p. 10), "Zeus recolheu do ventre da amada o fruto inacabado de seus amores e colocou-o em sua coxa, até que se completasse a gestação normal". Depois de nascido, Dioniso fora entregue aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros do monte Nisa, onde descobrira o novo néctar; o vinho.
A interpretação que me importa acerca desse mito para o presente texto é assinalar a partilha do caráter ambíguo que há entre o vinho e as pessoas, numa tensão com a forma pela qual a pólis tentava regulamentar a sua organização sócio-política. Da felicidade à infelicidade, do homem comum (“ánthropos”) àquele integrado com Dioniso (homo dionisyacus), capaz de tornar-se um herói (“anér”) – aquele que ultrapassa o “métron”, a medida de cada um (o limite comum de todos os homens). Pois, “tendo ultrapassado o métron, o anér é, [...] “hypocrités”, quer dizer, aquele que responde em êxtase e entusiasmo, isto é, o ATOR, um outro”. (BRANDÃO, 1984, p. 11)
E “essa ultrapassagem é uma “désmesure” (desmedida), uma “hybris”, isto é, uma violência feita a si próprio e aos deuses imortais, o que provoca “némesis”, o ciúme divino: o anér, o ator, o herói, torna-se êmulo dos deuses”.[1] (BRANDÃO, 1984, p. 11)
Essa constante, ventura/desventura, irá marca todo o enredo da tragédia em Sófocles. Embora suas personagens não estejam imersas nos delírios do néctar de Dioniso, elas expandem os limites da ação humana para além do métron, mesmo que nessa empreitada recaia sobre eles “até”, cegueira da razão, a punição divina por tal ato. Assim sucedera ao herói grego Ájax, que se creia ajudado pela deusa Atenéia, quando esta, na verdade, ajudando Odysseus, inimigo e ao mesmo tempo admirador daquele, escurecera a visão de Ájax “por ter levado, longe demais, o seu furor” (SÓFOCLES, [199?], 113 p.), tal como se vangloria a deusa ao informar o herói Odysseus:

Fui eu! Afastei-o de uma alegria que já não tinha remédio. Fui eu que sumi os seus olhos no desvario e os fiz voltarem-se contra o rebanho, contra as reses dos despojos, que ainda não se haviam repartido, e que os vossos boieiros mantinham misturadas. [...] Apresso, então, os delirantes ataques da sua loucura; empurro-o para dentro de um limitado cerco de males. Quando cessa, finalmente, a matança, ata com cordas os bois e outros animais do rebanho que ainda não haviam morrido, e arrasta-os para a sua tenda, convencido de ter caçado, não bois, mas homens. (Ibid., p. 65.) [2]

Mas qual a relação da mistificação do vinho e seus efeitos com a peça do poeta grego Sófocles e com as outras de um modo geral?
Os adeptos de Dioniso disfarçavam-se em sátiros e, nas cerimônias, se embriagavam e começavam a cantar e dançar freneticamente até cair desfalecidos, neste sentido, "eram concebidos pela imaginação popular como "homens-bodes" (BRANDÃO, 1984, p. 10). Ora, este mesmo autor nos lembra que a formação da palavra "tragodía" é composta pelos equivalentes gregos "trágos", que significa bode, mais, "oide", que expressa canto, mais o sufixo "ía", ia, constituindo a gênese do latim tragoedia e da nossa tragédia. Brandão (1984, p. 10) ainda ressalta que a origem da palavra pode ser derivada do sacrifício de um bode a Dioniso,

"bode sagrado", que era o próprio deus, no início de suas festas, pois, consoante uma lenda muito difundida, uma das últimas metamorfoses de Baco, para fugir dos Titãs, teria sido em bode, que acabou também sendo devorado pelos filhos [...]

Neste sentido, “a tragédia só se realiza quando o métron é ultrapassado”. (Ibid., p. 12). Ela não reside nos extremos, da mudança repentina dos bons aos maus, ou vice-versa, mas daquele que cometera um “harmatían”, um “erro”, e, por causa disso, passa da boa à má fortuna[3]. A peça trágica deve ter a capacidade de suscitar, simultaneamente, a purgação própria ao terror e a piedade que a performance imita da realidade e lhe confere emoções ímpar daquelas do “real”.
O fundador da tragédia grega foi Ésquilo (525-456 a. C.), cujas personagens se veem imersas em culpa e castigo e onde os deuses atuam diretamente, de forma a sempre empurrar os heróis para o inevitável abismo da maneira mais rápida possível. O que difere das peças de Sófocles (496-406 a. C.), em que a representação do homem – ou, tratando-se de Antígona, da mulher – digladia com o fluir do seu destino[4], com os meios, e os deuses interferem de maneira “indireta” por meio dos prognósticos do Oráculo de Delfos[5], ou, do velho vidente tebano, Tirésias[6]. Um bom exemplo disso encontra-se no início da peça Antígona: quando do discurso de sua irmã, Ismene, na tentativa de impedi-la de sepultar seu irmão, Etéocles, Antígona a ela responde:

Ainda que me pudesses ajudar, agora, já não to pediria. A tua ajuda não seria do meu agrado. Enfim, reflecte sobre as tuas ideias. Eu vou enterrá-lo e, depois, que a morte venha. Permanecerei, como amigo, junto do bom amigo; tranquila por haver cometido um delito piedoso. Mais tempo agradará a minha conduta aos debaixo da terra do que aos de aqui, pois o meu descanso entre eles durará eternamente. Quanto a ti, pensando como pensas, desonras os que honram os deuses. (SÓFOCLES, [199?], p. 13, grifo nosso)

Na passagem citada, Antígona não somente demonstra essa luta contra o desenrolar do inevitável[7], como também a sua fúria frente ao que considera uma verdadeira transgressão da parte de Creonte para com os deuses e leis eternas. A ação de Antígona também defronta o restrito campo de exercício ao qual fora submetida à mulher na polis, como alerta Ismene:

[...] pensa que ignominioso fim nos espera, se violarmos o que está prescrito; se transgredirmos a vontade ou o poder dos que mandam. Não! Há que aceitar os factos: somos duas fracas mulheres incapazes de lutar contra homens, contra os poderosos que ditam as leis, e temos de cumpri-las – estas e, possìvelmente, outras mais dolorosas ainda. (Ibid., p. 13,)

Ora, pode-se supor que a tragédia se apresenta para além de seus meros esquemas artísticos, quer dizer, ela é uma ferramenta política de regulamentação social. Não é a toa que em sua gênese tenha ela nascido com os cultos dionisíacos, pois, se a integração do homem com o seu deus Dioniso fora amplamente censurada é porque toda ela se desenrola com muito vinho, muita música e bacanais, que juntos, por vezes, acabava em confusão.
Portanto, que interpretação caberia ao estado grego fazer de tal culto senão aquela de que o homem, sob o fervor de tais celebrações, estaria propenso a transgredir as normas e promover a desordem. A pólis teme as ações do homo dionysiacus.
Daí porque o momento eufórico vivido pela pólis Atenas no período dito “clássico”, entre os séculos V e IV, sobretudo no governo de Péricles, que é o da difusão através dos “discurso-micenas” da representação do ideal a ser seguido: o comportamento do hypocrité nada mais é do que o almejado pela pólis para com a sua população.[8]
Neste sentido, “chamamos de trágica à peça cujo conteúdo é trágico e não necessariamente o fecho”. (BRANDÃO, 1984, p.15)


[1] A esse respeito, André Bonnard (19, p. 9) assinala que: “O herói da tragédia é o aviador ousado que se propõe forçar o muro do som. Quase sempre, esmaga-se na tentativa. [...] No entanto, toda a tragédia traduz e torna mais firme a aspiração do homem a ultrapassar-se num acto de coragem inaudito, de ganhar uma nova medida da sua grandeza, frente aos obstáculos, frente ao desconhecido que ele encontra no mundo e na sociedade do seu tempo.
[2] O “até” consiste em que toda a ação que fizer voltar-se-á contra si próprio. Isto será evidenciado mais tarde, quando Ájax irá se recuperar de seu desvario, e, vergonhoso de seus atos reconhecerá perante seus marinheiros: “Não vedes o valente, o de coração esforçado, o que nunca tremeu entre os mortíferos golpes de um combate? Foi o meu braço um algoz, mas contra animais que não fogem. Ai de mim! Sou o escárnio de todos, pois fui eu próprio que me cobri de ignomínia”. (Ibid., p. 76)
[3] Mais dirá Antígona a Creonte: Não foi Zeus que ditou esse decreto; nem Dice, companheira dos deuses subterrâneos, estabeleceu tais leis para os homens. E não creio que os teus decretos tenham tanto poder que permitam a alguém saltar por cima das leis, não escritas, mas imutáveis, dos deuses; a sua vigência não é, nem de hoje nem de ontem, mas de sempre, e ninguém sabe como e quando apareceram. [...] E, se morrer agora, lucrarei com isso; pois quem, como eu, vive entre tantos males, ganha com a morte. Só encaro, como desgraça, ficar insepulto um filho de minha mãe e eu consentir: isso, sim!, é que me seria doloroso. Pode parecer-te que procedi como uma louca, mas é quase a um louco que dou conta da minha loucura. (SÓFOCLES, [199?], p. 24)
[4]  Buscamos a ideia de que a moira (destino inevitável) nada mais é do que uma metáfora em Diakov (1976, p. 189). Embora se trate de um livro no qual o discurso que perpassa os acontecimentos narrados guarde laços com uma historiografia marxista que vê na dialética essa tensão e evolução histórica, cabe assinalar uma das poucas passagens destinadas à análise da tragédia em Sófocles, veja-se o trecho: “o tema dominante das suas tragédias é o conflito entre o indivíduo e a sociedade, a perda inevitável daquele que transgride a lei social”.
[5] “Não longe de Atenas existe o Monte Parnaso. (Nele) [...] havia uma cidade chamada Delfos. (Nela) [...] existia no solo uma fenda donde saía fumaça [...]. Os gregos acreditavam que [...] era o sopro da respiração do deus Apolo. Perto da fenda uma sacerdotisa [...] ficava sentada num tamborete de três pernas [...] para respirar aquela fumaça. Quando isso fazia, ela ficava fora de si [...]; então as pessoas interessadas faziam-lhe perguntas e ela em resposta resmungava umas coisas estranhas, cuja significação era explicada por um sacerdote. Aquele lugar chamava-se “Oráculo de Delfos”. (HILLYER, 1962, p. 45, grifo nosso)
[6] “Tirésias, em sua juventude, vira, por acaso, Minerva se banhando. Furiosa, a deusa privou-o da visão, porém mais tarde, abrandando-se, concedeu-lhe, como compensação, o conhecimento dos acontecimentos futuros”. (BULFINCH, 1984, p. 221)
[7] Referimo-nos a hereditariedade da maldição, que falaremos na parte 2.2.
[8] Dessa mesma opinião compartilha André Bonnard: “No plano da tragédia, a missão própria do poeta é ser o educador dos homens livres. A tragédia, em princípio, é um gênero didático”. (Id., 19, p. 8)

 João Paulo Nascimento de Lucena
Bibliografia



BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 1984. 116 p.
BONNARD, André. Civilização Grega II. Tradução: José Saramago. Lisboa: Edições 70, 2007. pp. 7-40
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: a idade da fábula... 26. ed. Tradução: David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 417 p. il.
HILLYER, V. M. Pequena história do mundo para crianças. Tradução e adaptação: Godofredo Rangel. 5. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1962. il. 285 p.
SÓFOCLES. Antígona. Tradução: Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2011. 112 p.
SÓFOCLES. Antígona; Ájax; Édipo Rei. Versão portuguesa de António Manuel Couto Viana. [S.I.]: Verbo,[199-?]. 181 p.

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