segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Da semelhança de ofícios

História é narrativa e é por meio dela e nela que o historiador lança mão para construir suas tessituras explicativas. Nesse sentido, a fabricação desse textus diz respeito a uma dinâmica que engloba os mais variados fragmentos e etapas. E é nesse processo que o seu ofício se assemelha ao do marceneiro.

Num primeiro momento, a analogia pode parecer sem nexo, visto que atuam em campos bastante distintos. No entanto, é no modus como operam que os laços se estreitam. Por marceneiro, o leitor-comum deverá entender aquele capaz de reunir e realizar vários tipos de trabalhos em madeira, e desvinculá-lo da imagem de um “quase carpinteiro”, que, aliás, é um tanto pejorativa. Acima de tudo, ele é um artista autônomo, o profissional do restauro, do envernizar, do folheado, da palhinha e do improviso. Exímio artesão no manuseio dos instrumentos de sua oficina, nenhuma madeira lhe escapa à identidade, bastando uma boa olhadela para o seu reconhecimento.
Por outro lado, tem-se o historiador, cujo livro apresenta-se como o resultado de sua prática de pesquisa, do diálogo estabelecido com suas fontes e com seus pares, das regras metodológicas às quais está submetido e da sua própria relação passado-presente. Segundo o Aurélio, “narração é o ato ou efeito de narrar, de exposição oral ou escrita de um fato; narrativa”. Porém, "um fato é como um saco - não ficará em pé até que se ponha algo dentro". (CARR, 1982, p.47.).
É a narrativa, portanto, o seu instrumento. E o corpo de suas fontes pode ser tanto material – como jornais, fotografias e documentos –, quanto imaterial – como o relato da experiência de um agente social e a memória individual ou coletiva –, assinalando que o passado se constrói – ou se restaura - no presente.

“Na sua mesa de trabalho, o historiador comporta-se como o marceneiro que nunca vai juntar dois pedaços quaisquer de madeira: ao construir um móvel, ele recolhe um pedaço com entalhes para as gavetas e um outro pedaço com pino para o forro. O todo orienta as partes.” (PROST, 2008, p. 213)
Nada de ingenuidade, pois “nem todos os fatos sobre o passado são fatos históricos, ou tratados como tal pelo historiador”. (CARR, 1982, p. 46). É pura experiência. Ele seleciona, reúne, transforma, (re)significa e constrói o corpus documental que irá compor sua estrutura narrativa, guiado a priori por suas questões e objetivos. Porém, tal pensamento pode levar a errônea conclusão determinista de que, tal como num quebra-cabeça, a história deverá ser preenchida por suas exatas peças, quando na verdade, estas peças sequer existem independentes de quem as interpreta.
Tal como a arte do verniz, na qual o marceneiro esconde falhas e confere novo brilho ao móvel, o historiador tem a capacidade – ou defeito – te tornar o passado mais opaco ou mais ilustrado.

João Paulo Nascimento de Lucena
Bibliografia

CARR, E. H. Que é história? Tradução: Lúcia Maurício de Alverga. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. 189 p.

PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Tradução: Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. 287 p.

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