segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Anotações para o estudo de um folguedo sob a ótica da história dos conceitos

Inicialmente auto natalino, chamado presépio, os pastoris em Pernambuco aludiam ao nicho em que nascera o menino Jesus. Posteriormente convertido em peça dinâmica, seu enredo agora incluía as jornadas das pastorinhas até Belém. Entremeada por personagens bíblicos e históricos como o anjo Gabriel e o rei Herodes, a apresentação, que contava também com declamações e cantos, se desenrolava da seguinte forma:
À caminho (de Belém), Lusbel, anjo maldito, tenta seduzir a Diana, salva pelas interferências de Gabriel. Aí entram jonadas cantadas e comparecem personagens e alegorias como Herodes, Culpa, Mestra, Contra-mestra, Religião. O último ato consiste na chegada e adoração, quando as pastoras depositam oferendas diante do presépio armado no fundo do palco e, com a cena final, retornam para casa, as cortinas se fecham para se abrir novamente, com as figuras ocupando seus lugares no presépio. (ARRAIS, 1998, p.101)
Porém são as transformações ocorridas no interior dessa tradição cristã que irá caracterizá-la como uma diversão verdadeiramente pública, de pessoas que “não tinha arame nem para uma gelada” (ARRAIS, p. 102). Criticados pela Igreja, que a viam como uma prática indecente que profanizava afrontava a moral, a família e a ordem urbana, esses pastoris, praticados no Recife e, principalmente, em seus arrabaldes no período compreendido entre o início do século XX até 1910, haviam acrescentado em sua narrativa a sensualidade, a malícia e músicas tanto da moda quanto de outras de variadas origens.
Com a utilização do termo pastoril emergem três conteúdos; o primeiro é o presépio estático da tradição Cristã; o segundo seriam aqueles pastoris encenados nas residências da elite no final do século XIX, mas que já se distinguia do dos templos; e por último o Pastoril de ponta de rua, o popularizado. Essa apropriação, por sua vez, em nada alterou a vestimenta que distinguia os dois “cordões” ou “partidos”, saia curta, blusa branca e corpete azul no Cordão Azul, e corpete encarnado no Cordão Encarnado.
Pode-se dizer que a principal diferença nesse Pastoril Profano é a participação das mulheres. Segundo a revista semanal O Periquito, fonte que Raimundo Arrais problematiza em seu texto, as pastorinhas estariam ligadas ao cenário de prostituição da cidade do Recife. E isto estaria evidenciado pelos nomes adotados por essas mulheres que aludiam às grandes prostituas do Recife, sejam eles apontando defeitos - como Maria Peito Arriado -, ou mesmo como tática galanteadora, como Juju Boca de Jasmin. Suas apresentações, ainda segundo a revista e também presente nas crônicas de memorialista, como Ascenso Ferreira, consistiam em requebros e mostra gratuita de roliças pernas, acompanhadas do "assalto" do público por meio do arremate.
No entanto, a questão deve ser mais problematizada, sobretudo no que se refere à imagem dessas pastorinhas. Em primeiro lugar trata-se de uma época essencialmente machista, em que essas "rameiras" talvez não passassem do que hoje se entende por brincantes. Segundo que a adoção desses nomes no interior do Pastoril pode ser interpretada como a apropriação dinâmica característica da cultura, uma vez que essas práticas são desenvolvidas por agentes sociais que “é sendo”, ou seja, são historicizados, mudando e transformando suas experiências ao longo do tempo e em face de um novo contexto.
Tendo em mente que numa simplificação sempre se corre o risco de perder todo o encadeamento e assimilações decorrentes de uma abordagem abrangente e perspicaz, pode-se assinalar para o presente tema, contudo, que, um conceito seria aquele capaz de sintetizar e generalizar uma experiência histórica. Koselleck diz que todo conceito é sempre concomitantemente fato e indicador, ou seja, está para além do texto/contexto, pois “um conceito relaciona-se sempre àquilo que se quer compreender, sendo portanto, a relação entre o conceito e o conteúdo, a ser compreendido, ou tornado inteligível, uma relação necessariamente tensa”.
João Paulo Nascimento de Lucena
Bibliografia
Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. KOSELLECK, Reinhart. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 134-146.
ARRAIS, Raimundo Pereira Alencar. Recife, culturas e confrontos: as camadas urbanas na campanha salvacionista de 1911. EDUFRN, 1998. p. 100-114.

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