sexta-feira, 10 de junho de 2011

Oração



Foto de meu acervo: Dona Maria diante de seu altar.


        Hoje venho contar a história da minha visita à casa de uma parteira da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, Santa Catarina, como havia prometido em minha última postagem1. No dia seguinte ao nosso primeiro encontro, conforme o combinado, subi a ruazinha em direção à casa de Dona Maria de Lourdes para uma visita. Bati palmas e me aproximei de sua porta:

- Entre, minha filha!

Assim que entrei senti-me logo à vontade, como é costumeiro nas casas simples com flores nas janelas. Dona Maria tem cabelos cor de prata, cacheados, sessenta e quatro anos, vinte e quatro netos e seis bisnetos. Exclamei:

- Já, Dona Maria?

Ela explica:

- Comecei cedo, minha filha.

        Dona Maria é benzedeira, recebe as pessoas na sala de sua casa diante de um lindo altar. Nossa conversa foi muito prazerosa. Eu estava satisfeita em conhecer uma parteira da ilha, já que sou catarinense, e ela parecia feliz em compartilhar um pouco de sua história, práticas e saberes comigo. Começou contando-me a respeito de suas rezas: arca caída, bucho-virada, zipra, afogado, cobro. Ensinou-me algumas orações. Buscou um livro2 para que eu anotasse uma delas:

Oração à Santa Catarina

Fonte: site da internet3

Minha Santa Catarina, eu vos peço:


Que abrande o coração de quem raiva tiver de mim,


Que a mão não me pegarão,


Boca não me falarão,


Ouvidos não me escutarão,


Sua arma não me fere,


Seu veneno não me mate,

Arma de fogo contra mim negará.

Livrai-me, Santa Catarina, contra as tentações do demônio:
das quedas, das calúnias, da inveja, da falsidade, do orgulho, do mau gênio, da morte interna.

Santa Catarina, dai-me coragem e religião.

Amém.

        Nosso assunto agora era o parto. O último que atendeu foi em 2000, depois desistiu. Contou-me que a moça queria ter a criança na água do mar e ela ficou espantada com essa idéia:

- Se fosse aqui na lagoa, na água calminha, na beirinha da lagoa. Acho que aí sim eu animava! Mas no mar! E se a água vem muito forte? Assim eu não vou, não! Depois disso deixei os partos.

Foram cinco no total. Um deles foi junto com Pedrão, médico conhecido pela comunidade da Lagoa da Conceição. Dona Maria buscou sua bolsinha de parteira para me mostrar. De algodão cru, tinha um travesseirinho para aparar o bebê, um saco para a mulher soprar, linha, toquinha de meia para aquecer a cabeça do recém nascido e uma oração anotada num papel que já se desmanchava pelo tempo.

        Disse-me que contava quatro dedos para cortar o umbiguinho, e utilizava um óleo bento, santo, no “cotoco”. Perguntei mais sobre os partos, como ela fazia, como era. Contou-me que usava banha-de-galinha, esquentava e ia passando na barriga da mulher. Também falou que deixava as mulheres de “cocra”. Entre as ervas utilizadas por ela estão a camomila e a erva-cidreira. A semente da mostarda roxa, fervida com bastante água, servia para estancar hemorragia.

        Lembrou-se de suas companheiras: Alvilina, Dindinha Liandra, Rita. Queria levar-me para passear e conhecer as outras benzedeiras da região. Pena que minha viagem de volta ao Recife estava marcada para o dia seguinte. Dona Maria perguntou seu eu conhecia a oração de Santa Margarida, para quando a placenta demora a sair. Depois disso me rezou. Reza forte, bonita. Cantei um hino do Mestre Irineu4 para ela ouvir. Ela gostou muito, quis aprender, e cantou para mim também uma canção. A sintonia entre nós duas se estabeleceu de pronto. O carinho e a vontade de estar perto também.

        Dona Maria não atende mais aos partos, mas, como boa parteira que é, continua compartilhando o que sabe com aquelas de desejam aprender. Generosa, oferece-me peixe para eu preparar em casa, não bastasse tudo que já havia me ofertado. E pergunta se quero aprender a fazer chale de ponto de renda de pesca. Gostaria muito, Dona Maria.

        Findo esta história agradecendo à Deus, à Nossa Senhora da Conceição, que sempre me guia e protege, à Santa Catarina, que também me abençoa desde meu nascimento naquele Estado. Ao nosso Senhor Jesus Cristo, ao Patriarca São José e à todos os seres divinos da corte celestial. Agradeço à Dona Maria e à todas as parteiras, rezadeiras, benzedeiras, curandeiras e bruxas da Ilha de Santa Catarina e do mundo. Agradeço às minhas ancestrais e a todas as mulheres fortes, sábias e belas que se dedicam ao que fazem com a alma e o coração. Amém.

(E agora um beijo pra mãezinha da terra:)*

Notas:
 

2. BORGES, Elaine. SCHAEFER, Bebel Orofino. Vozes da Lagoa. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes; Fundação Banco do Brasil, 1995


 
4. Negro forte, com dois metros de altura, Raimundo Irineu Serra nasceu em 15 de dezembro de 1892, em São Luís de Ferré, no Estado do Maranhão e era filho de Sancho Martinho Serra e Joana de Assunção Serra. Chegou no Acre com 20 anos, integrando o movimento migratório de nordestinos para trabalhar na extração do látex. O Mestre Irineu passou por uma fase de iniciação no interior da floresta e tornou-se conhecido como Mestre dos seguidores da Doutrina do Santo Daime. (Fonte: História do Povo Juramidam; introdução à cultura do Santo Daime, FERNANDES, 1986)




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